PEDOFILIA NÃO É CRIME

Em tempos de discussões políticas acirradas, não é incomum receber mensagens de grupos de WhatsApp opinando sobre diversos assuntos, geralmente, polêmicos. “Pedofilia não é doença, é crime” é um dos equívocos que está sendo reproduzido, sem que seja apresentado qualquer argumento técnico que fundamente a afirmativa.

Em respeito a você, leitor, esclareço que o objetivo deste pequeno texto é exatamente o contrário: promover uma reflexão que aprecie critérios científicos e legais claramente estabelecidos.

Análise sob a perspectiva da doença

Identificar a partir de qual perspectiva o assunto esta sendo abordado é fundamental. Ao utilizarmos o termo pedofilia nos inserimos, necessariamente, em uma perspectiva de saúde mental, pois a palavra se encontra nomeada cientificamente como um dos subtipos do Transtorno de Preferência Sexual (TPS) descrito no Código Internacional de Doenças (CID 10: F65). Vários são os estudos científicos que tratam do tema.

Análise sob a perspectiva do comportamento humano

A ideia geral do termo pedofilia se remete ao abuso sexual de crianças e adolescentes, contudo, agressores sexuais não se apresentam com as mesmas características. Como o próprio CID assinala, estes sujeitos (de qualquer gênero, diga-se de passagem) podem sentir atração sexual seguindo determinadas preferências ou não. Existem ainda aqueles que não se encaixam em qualquer subtipo destacado do transtorno, ou seja, não “fecham diagnóstico”. Deste modo, associar um diagnóstico a um tipo penal, além de não ser o correto em termos legais, pode comprometer, sobremaneira, a finalidade da norma. Explicarei melhor ao final do texto, mas antes, passo à sucinta análise jurídica para complementar o raciocínio.

Análise sob a perspectiva jurídica

Ao examinar a violência sexual contra crianças e adolescentes na perspectiva do Direito Penal, 3 pontos fundamentais podem clarear o entendimento:

1- O crime é uma ação ou omissão, isto é, um comportamento. Não se considera, para tanto, se o comportamento é patológico ou não.

2 – No que tange à teoria penal, um dos elementos que definem o crime é o tipo penal. Isso significa que para ser crime a conduta (ação ou omissão) deverá, obrigatoriamente, estar descrita no Código Penal Brasileiro (CPB). Em outras palavras: sua opinião moral sobre determinado comportamento não o define como crime. É a lei quem dita.

3 – O CPB recepciona os “Crimes Contra a Dignidade Sexual” inserindo, dentre outros, no artigo 217-A o “Estupro de vulnerável”, mais importante tipo penal que se relaciona com o tema.

À vista disso, fica claro que o abuso sexual contra crianças e adolescentes é crime, mas, como bem disse o advogado criminalista e professor de direito penal Túlio Vianna,“não existe o crime de pedofilia na legislação penal brasileira, o que há na legislação brasileira são vários crimes que tratam da situação em que o individuo adulto pratica atos sexuais com crianças”.

O problema de se insistir no equívoco.

Ainda que tal cenário seja impossível no nosso ordenamento jurídico, vou me atrever a “desenhar” uma ficção jurídica a partir da ideia que vem sendo reproduzida. Todavia, não há como descartar a definição nosológica da pedofilia, uma vez que já está posta na literatura médica.

Nosso exercício de reflexão é o seguinte: no artigo 217-A onde se lê “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, por hora, leia-se “pedofilia é crime”.

Seguindo esse raciocínio, o crime somente restaria caracterizado e, portanto, passível de punição, se confirmado o diagnóstico de transtorno pedofílico do autor do fato, uma vez que, de acordo com o entendimento proposto, o núcleo do tipo penal passaria a ser a patologia e não a conduta delitiva, como efetivamente acolhe o CPB.

Ainda assim precisamos refletir sobre outros 2 aspectos. Alguns estudos apontam que a maioria dos molestadores sexuais não são pedófilos, ou seja, não apresentam todos os critérios para o diagnóstico, conforme afirma o médico psiquiatra Dr. Danilo Balteri.

Outro ponto importante é que, se seguíssemos a ideia da ficção jurídica que ensaiamos acima, a pessoa acometida pelo transtorno que, consciente do desajuste de seus pensamentos consegue conter seus impulsos sexuais e não praticar qualquer violência contra crianças e adolescentes, ainda assim seria considerada criminosa tão somente pela confirmação da patologia, vez que a definição do quadro clínico da doença se dá por critérios específicos que não exigem necessariamente a concretização do ato sexual com crianças.

Lembrando que existem pessoas que apresentam a doença e procuram tratamento médico/psicológico, outras que não suportam o sofrimento e cometem autoextermínio.

A verdade é que nem todo abusador é pedófilo e nem todo pedófilo é abusador!

A mídia, de modo geral, usa e abusa do termo “pedofilia” ao descrever o crime sexual contra menores. Dá ibope. Não é difícil encontrar textos publicados, inclusive jurídicos, que cometem o mesmo erro. Pode-se até considerar que alguns destes escritos estejam buscando maior proximidade e compreensão do leitor, já que o termo é tão frequentemente utilizado. Mas, ainda assim, é um erro: doença e tipo penal não se confundem. E, o pior, não contribui em nada para a saúde mental.

Concluindo

Do ponto de vista da moralidade, não há o que discutir: o abuso sexual infantil é um comportamento repugnante, abominável, especialmente na cultura em que estamos inseridos.

É fácil entender que ao insistir na ideia de que pedofilia é crime, e descartar qualquer análise técnica sobre o assunto, algumas pessoas buscam a efetiva punição para quem comete o abuso infantil. Acontece que o argumento apresentado está tecnicamente errado, ou seja, não é esse o caminho para se discutir o problema.

O que poderia ser repensado, em momento apropriado a discussão dos legisladores, é o regime jurídico penal a ser aplicado a autores de crimes sexuais contra crianças e adolescentes que, na oportunidade do incidente de insanidade mental, sobrevenha o diagnóstico de pedofilia (CID-10: F65-4). Desta forma, a discussão incidiria sobre a análise da imputabilidade penal (artigo 26 do CPB) do autor do fato que efetivamente apresente o transtorno de preferência sexual e não sob o tipo penal.

Moral da história (bem resumida)

O fato de não concordar que pedofilia é uma doença e não um crime, não irá tornar a pedofilia crime. Mesmo que você repita essa afirmativa 100 vezes ao dia.